Minhas Crônicas


Crônica 01

Desabafo de uma professora de Artes

Lembro-me da minha primeira escola, em 1962.
As salas eram grandes, as carteiras de madeira eram geminadas.
Os bancos pareciam de jardim, eram pesados, tinham os pés de ferro.
Lembro da cantina e da merenda.
Havia um depósito onde se guardavam as carteiras velhas e o material de limpeza. Lembro-me bem, pois, para entrar na sala de aula, passava sempre por aquele depósito.

Também me lembro da professora que dava aula de Artes.
Ela era linda, muito boazinha, paciente, atenciosa.
Os pequenos alunos sempre acham as professoras lindas.
Ela sabia fazer muitas coisas legais de Artes.
Tinha feito o magistério.

O foco das aulas eram os trabalhos manuais.
Tapetes de ponto cruz, bordados coloridos com linhas de meada e pequenos bastidores. Meus olhos brilhavam a cada laçada.
Lembro-me bem, como eram gostosas aquelas horas.
Talvez pela oportunidade de produzir e realizar algo diferente das disciplinas teóricas. O tempo passava rápido, a aula logo terminava.
Restava, no final, o corpinho dolorido e as pernas adormecidas.
Eram os efeitos das carteiras duplas, dos “bancos de jardim”, enfim, do desconforto.

Às vezes me pego pensando...
se tivesse, àquela época, as professoras de Artes das escolas de hoje,
muita coisa teria sido diferente.
Hoje elas têm curso superior, têm metodologia, têm didática,
têm que planejar as aulas, são supervisionadas, sabem muito de Artes,
e, ainda, têm a doçura, o carinho e a atenção de antigamente.

Com isso, eu teria aprendido sobre a história da Arte,
teria viajado no tempo, conhecido Michelangelo, Rembrandt, Monet, Degas, Rodin, Matisse, Picasso, Debret, Miró, Portinari, Giacometti, Aldemir Martins e Segall.
Teria conhecido Jorapimo, Manoel de Barros e Conceição dos Bugres,
até teria feito bugrinhos de argila, de massinha, papel machê, e etc.
Teria conhecido muitos outros que, infelizmente, por falta de espaço, tenho que omitir.

Mas, uma coisa, hoje, seria exatamente igual, o desconforto, a inadequação.
As carteiras já não são mais duplas, os bancos já não são de jardim,
mas continuam desconfortáveis, incompatíveis.

A professora atual não tem um espaço adequado, não tem uma “sala de artes”.

Ela não tem um lugar que não seja preciso encerrar os trabalhos mais cedo,
a fim de preparar a sala para a aula de matemática, português, que virá a seguir.
Não tem um lugar em que possa mexer com barro, com tinta, com massa, enfim, que possa sujar.
Não tem um lugar com uma pia, com água à mão, facilitando determinados trabalhos,
permitindo, inclusive, a limpeza do local, ao final da aula.

Não tem um lugar com uma mesa grande, que permita o trabalho conjunto,
que possibilite a participação simultânea no desenvolvimento das tarefas.
Não tem um lugar com prateleiras para deixar expostos os trabalhos realizados.
Não tem um lugar com armários grandes que permitam guardar os materiais e os trabalhos inacabados a serem posteriormente finalizados.

Dessa maneira, hoje, as professoras de Artes, apesar de toda a bagagem cultural,
apesar de toda a preparação, de tanta exigência,
ainda dependem da criatividade, da iniciativa pessoal, e de bastante boa vontade,
para superar as adversidades que lhes são impostas por uma estrutura arcaica,
superada, defasada, e extremamente inadequada ao exercício da sua atividade.
Incompatível, mesmo, com uma disciplina que pretende desenvolver a capacidade criativa, a sensibilidade, e a expressividade em cada um daqueles pequenos seres,
tão cheios de sonhos, e nos quais o nosso país deposita tantas esperanças.

Assim, para concluir, posso afirmar que,
se naquela época eu tivesse os professores que meus alunos têm hoje,
com certeza, teria conhecido o verdadeiro sentido da palavra arte,
mas ainda continuaria com o corpinho dolorido e as pernas adormecidas.
Eliana Barbosa
03/08/2011

Crônica 02

A lição de Micael


Hoje, pela manhã, dia 16 de fevereiro de 2007, sexta feira, véspera de carnaval, na sala do 2° ano B, no meu primeiro dia como professora de artes desta turma, composta de crianças na faixa etária de sete anos, a experiência a seguir relatada, singela e bastante comum no cotidiano dos professores, muito me marcou e me vejo na obrigação de dividi-la com outras pessoas.
Os pequenos alunos ainda não me conheciam e quando cheguei na porta da sala de aula, ali estavam alguns deles que me disseram:
- Micael quer tirar a mochila.
Eu, inicialmente, não entendendo o que queriam, pedi para que os pequenos entrassem na sala.
Eles, no entanto, repetiam:
- Micael quer que tire a mochila.
Eu então perguntei:
- quem é o Micael?
- É ele! Responderam as crianças, apontando para um menino.
Olhei para ele e o reconheci. Era um garotinho que eu sempre via sendo levado pela mão por sua professora, durante todo o ano passado.
Ele sempre ficava em pé, escorado em uma cadeira ao lado da sala dos professores, durante o recreio.
Aquilo sempre me incomodou. Eu passava por ele, sorria e perguntava se estava tudo bem. Em seguida entrava na sala para um cafezinho rápido, pois, normalmente, estava atrasada e carregando um monte de apetrechos para minhas aulas de artes. Não lhe podia dar muita atenção.
E assim procedi durante o ano inteiro. Nenhuma atitude. Nada fiz.
Nada além de um sorriso, pois, ao tocar o sinal de reinício das aulas, a sua professora já o levava para a sala novamente.
Naquele primeiro dia de aula, entretanto, em meio aos alunos, Micael se destacou.
Fui até ele e o cumprimentei:
- Bom dia meu querido!
Ele me olhou e esboçou um meio sorriso, ali, imóvel, em pé ao lado da cadeira de sua carteira.
Eu, sem compreender, pedi para que se sentasse.
Ele, entretanto, não se mexeu e apontou para sua mochila.
Perguntei:
- O que você quer? Quer que te ajude a sentar?
Novamente ele apontou para a mochila.
Foi então que entendi, e perguntei:
- Quer que eu tire a sua mochila de cima da carteira?
Ele balançou a cabeça, sinalizando um “sim”. Em seguida apontou para eu pendurar a mochila no encosto da cadeira e assim o fiz.
E Micael, aliviado, finalmente se sentou.
A partir desse momento, as descobertas se sucederam.
As crianças me relataram:
- Ele quase não fala com a gente, só com a professora de sala e desenha muito bem.
Durante a aula, desenvolvendo seu desenho, me chamava e fazia suas solicitações, sempre em tom bastante baixo.
Eu tinha que encostar meu ouvido bem próximo da sua boca para ouvi-lo, e assim nos entendemos.
Na hora de sairmos para o lanche, pedi para que todas as crianças formassem uma fila e aguardassem enquanto eu ajudava o Micael.
Coloquei minha sacola de materiais no ombro e, em uma das mãos segurei duas caixas, uma maior com giz de cera e outra menor com papéis.
Estendi-lhe a outra mão, chamando-o para que viesse comigo.
Ele então sinalizou um “não” com a cabeça, e tentou falar para que deixasse minhas coisas e fosse ajudá-lo.
Nesse momento, chegou a inspetora de alunos alertando que já estava na hora das crianças fazerem o lanche.
Pedi então para que os levasse, porque eu iria com o Micael.
A seguir, deixei meus materiais sobre a minha mesa e, mais uma vez, estendi as mãos, chamando-o:
- Vem Micael!
Percebendo a minha dificuldade em entendê-lo, ele sussurrou e gesticulou para que o levantasse pelos braços a fim de que ficasse em pé.
Compreendi o pedido, pois percebi que ele não conseguia se levantar sozinho.
Ajudei-o com os meus dois braços, segurando-o para que ficasse em pé e, juntos, fomos lentamente para aquele cantinho em frente à sala dos professores.
Perguntei se ele gostaria de comer um lanche, pois eu poderia buscar.
Esboçando novamente o seu meio sorriso, ele disse, em seu tom bem baixinho, que não comia lanche na escola.
Aí então, peguei uma cadeira e coloquei-a ao seu lado.
Assim, mais uma vez, lá estava o Micael, em pé, apoiado em sua cadeira, durante todo o recreio, aguardando que a outra professora o levasse de volta para a sala de aula.
Terminei o meu turno de aulas, mas não consegui esquecer a experiência com Micael.
Eu havia notado que os pequenos alunos se preocupavam com ele e tratavam-no com carinho. Observei também que ele se sentia feliz junto aos coleguinhas.
Entretanto, nas minhas reflexões, eu é que não me senti feliz, pois, inúmeras foram as oportunidades que tive para dar um pouco de atenção àquele menino, saber as suas limitações, enfim, de conhecê-lo melhor. Porém, em virtude da correria do dia-a-dia inerente à atividade do professor, não consegui percebê-lo da forma que deveria e assim dar a minha contribuição no seu processo de inclusão.

Eliana Barbosa, professora de artes

Crônica 03

Vivendo e Aprendendo

Numa dessas idas e vindas, como professora de Artes da Rede Pública Municipal de Campo Grande, passei por uma experiência bastante interessante, uma verdadeira lição de vida, que me sinto na obrigação de dividi-la com outras pessoas.
Certo dia, no horário da aula para os pequenos alunos do 3º Ano B, recebi um rapaz, vendedor de um tipo de régua com múltiplas finalidades, toda colorida, cheia de apetrechos que possibilitavam a feitura de diversos desenhos geométricos, círculos dentados como engrenagens e outros dispositivos.
A verdade é que a engenhoca revelou-se maravilhosa aos olhos daqueles pequenos.
Havia, no entanto, um pequeno problema: o preço “simbólico” de apenas quatro reais. Como quase ninguém dispunha do dinheiro naquele momento, o vendedor voltaria no dia seguinte para concretizar o negócio.
E assim aconteceu. Estava eu em meio à aula, quando o jovem vendedor chegou para pegar o dinheiro e entregar as réguas.
Enquanto ele percorria a sala, de carteira em carteira, um aluno me alertou:
- professora o Thiago está chorando!
Imediatamente, fui verificar o que estava acontecendo e perguntei qual era o motivo daquele choro tão desesperado.
Ele, então, me disse que havia perdido a metade do seu dinheiro, que era em moedas.
Em meio ao choro, vasculhava a mochila, verificando em todos os bolsos e não as encontrava.
O vendedor, ao ver a tristeza e o desespero do garoto, foi até a sua carteira e disse:
- não tem problema! Não precisa chorar! Eu vou te vender pelos dois reais que você tem!
O Menino, como em um passe de mágica, abriu um sorriso e pegou a régua como se fosse um bem muito precioso.
Fiquei surpresa e bastante sensibilizada com a atitude do vendedor, agradeci em nome do Thiago.
Neste momento, um coleguinha pediu para ir à sala ao lado pegar o dinheiro da sua régua que estava com o seu irmão. Assim que ele saiu, o jovem vendedor disse que passaria depois para pegar o dinheiro daquele aluno.
Quando retornou, surpreendentemente, Thiago chamou-o e disse que havia achado o dinheiro perdido, dentro de algum bolso da mochila.
Admirado com a atitude do menino, o vendedor, para premiá-lo, recusou-se a receber, mas o garoto em sua inocência e senso de honestidade, com a “sabedoria” dos seus oito anos de idade, disse que não poderia ficar com o dinheiro, pois sabia que a régua custava quatro reais e todos os seus amiguinhos pagaram este valor.
Passada essa cena, muito comovida e impressionada com o gesto do Thiago, chamei a atenção de todos os seus coleguinhas para a atitude dele, e ressaltei, com bastante ênfase, que a educação vem do berço, que valores vêm da família e que a escola, o nosso bairro, o nosso estado, o nosso país e o mundo precisam de exemplos como aquele proporcionado por Thiago, oito anos de idade, aluno do 3º Ano B, da escola Múcio.
Assim, a partir da atitude desse garoto de apenas oito anos de idade, aluno de escola pública, que nos deu uma lição tão forte e ao mesmo tempo tão singela do que seja a honestidade, resta apenas dizer:
“parabéns Thiago, você me fez enxergar uma luz no fim do túnel”.

Eliana Barbosa, professora de Arte

Comentários

  1. Simplesmente maravilhosos esses textos, eu sempre soube que a prof. Eliana era uma mulher muito talentosa, mas não sabia que escrevia tão bem. Muitas saudades professora!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Deixe seu comentário será muito importante para min. Obrigada!

Postagens mais visitadas deste blog

MINHAS ESCULTURAS DE PAPEL MACHE

MINHAS GRAVURAS E XILOGRAVURAS

METAPINTURA